sábado, 12 de setembro de 2009

Trecho do Livro

Verão no Aquário

- Por que dormi aqui? perguntou Marfa.

Abri os olhos. O passado desapareceu com a rapidez dos vermezinhos que espiavam e se recolhiam nos furos dos livros do sótão. Encolhi as pernas e apoiei o queixo nos joelhos. “Raíza, Raíza!” ele chamara. E embora sua face fosse uma rosa, senti o hálito de hortelã.

- Você bebeu demais, não podia voltar daquele jeito para o pensionato.

Ela sorriu. Espreguiçou-se.

- Não podia por quê? As freirinhas me adoram, compreende? É aquela velha história, atração do abismo... Tem uma que é masoquista, quando chego ela vem depressa ao meu quarto e fica me devorando com os olhos, sentindo em mim cheiro de homem. E me faz cada pergunta... Um dia quase desmaiou quando viu uma mancha roxa no meu pescoço.

- Não sei como você ainda não foi expulsa.

- Nunca, meu bem. Sou para elas uma espécie de penitência, compreende? As outras pensionistas são sonsas, quando passam a noite fora, entram de madrugada com chave falsa e chegam ainda em tempo de assistir à primeira missa. Eu não faço mistério. Pois é esta ovelha a mais amada. A vida inteira lidei com freiras, tenho um jeito todo especial para levá-las direitinho... Quando a Madre Luzia perde a paciência, caio em tamanha depressão que ela chega a recear que eu enlouqueça como meu pai. E me perdoa. É da maior conveniência ter, às vezes, um pai louco.

- Sonhei com meu pai.

Ela virou-se de bruços na cama. A cabeleira negra espalhou-se no travesseiro.

- Pois eu não tenho morto nenhum para sonhar. Nem me lembro das feições da minha mãe, sei que tinha cabelos também pretos e que era meio estrábica, como eu, só isso que sei. E se amanhã meu pai morrer, pensarei nele apenas como num homem que me dava medo quando eu era criança mas que agora não me provoca mais nada. Nada. Que me importam os mortos? Eu também vou morrer, compreende? E quero saber agora se alguém vai se lembrar de me pôr no sonho.

Acendi um cigarro. Minha mãe me velaria com uma expressão magoada. Mas distante. Não, não precisaria nem de chazinhos nem de amigas, as amigas que por sinal nunca teve. André chegaria em silêncio e ficaria ao lado dela, vigilante. Então ela descansaria no regaço as belas mãos serenas e ficaria me olhando. Apenas olhando. Meu perfil - vago como um fio de linha desenrolado no ar - meu perfil não conseguiria comovê-la. Nem minhas mãos falsamente compungidas. Nem meu corpo apaziguado. Ela me olharia como olhou para meu pai morto. E de tudo o que fui e de tudo que fiz conservaria apenas a lembrança do reflexo da chama da vela em meus cabelos. De tudo, ficaria apenas aquele efeito de luz no meu cabelo. E que um dia ela poderia aproveitar numa das suas personagens que morreu jovem.

- Ele veio me acordar, mas não falamos. Como os mortos são solitários! Meu Deus, como são solitários!

Marfa levantou-se e deu alguns passos arrastados em direção à porta. Vestia apenas o paletó do meu pijama. As pernas muito brancas vacilaram. Fez então meia-volta e desabou novamente na cama.

- Tenho nojo dos mortos, compreende? Por mais que se ame um morto, é preciso prender a respiração para beijá-lo.

Lygia Fagundes Teles

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